A Batalha - Do Universo Inconsciente


Espaço para discussão do livro que teve lançamento no dia 03 de Agosto de 2010. Este blog tem o propósito de mergulhar no universo temático existente na obra A Batalha. Desvendar os recônditos ambientes propostos no conjunto de idéias que permeiam essa emocionante história. Um romance filosófico, uma ficção, uma fantasia que se deseja realidade e uma realidade que se permite fantasia. Aprecie trechos do livro, textos e imagens. Sejam Bem Vindos!

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Cap. 1 - A Batalha


A BATALHA
Do Universo Inconsciente


Cap. 1

Uma febre há muito esperada. Sem o Sol não haveria vida na Terra. No sol está a origem de praticamente todos os processos existentes no nosso planeta; a origem dos ventos, dos processos biológicos, das reações químicas.


Caso não existisse a imensa estrela de fogo, que gentilmente estende os braços à superfície terrestre, este planeta desconheceria a carinhosa energia proveniente das estrelas; conheceria apenas a escuridão gelada e melancólica. Em tempos remotos, por povos distintos, fora ele considerado a carruagem de diversos Deuses, ou, ele mesmo, um Deus; e como tal, era adorado. De modo que, naquele tempo, muitas mentes voltavam-se para lá.


Todavia, os tempos presentes, reservam grandes mudanças.



Era uma tarde quente de primavera, e o calor avisara, naquele dia não haveria misericórdia. As árvores balançavam satisfeitas ao vento. O Sol, a imensa bola de fogo incandescente e vibrante, se apresentava insaciável em seu desejo de tocar tudo na Terra. Chegava com avidez e inundava o ambiente de energia, emprestando a tudo ali a sensação de elevada temperatura. O intenso calor fazia transpirar as plantas, os objetos. A umidade tornava o ar denso, agradável. Flores, de diversas espécies, e plantas de pequeno porte, apresentavam seu balé de perfumes e cores, cochichavam e se tocavam, com o entusiasmo e a euforia juvenil típicas dessas pequenas plantas, animadas aos movimentos do ar. A vida tomava emprestada aquela atmosfera.
Divertiam-se em acrobacias aéreas os animais de vôo - ao longe, entre as nuvens e sob o azul profundo do céu; próximos à superfície, entre as árvores, improvisando pousos pouco ortodoxos. Realizavam, os pássaros, sua orquestra, acompanhados dos sons emitidos pelos diversos animais com pretexto de expressar sua euforia. Banhavam-se nas pequenas poças de água que restavam da recente e passageira chuva. Nos espaços abertos o calor era amenizado pela brisa do vento, que dispersava o aroma das plantas, da terra, satisfeitamente molhada, o perfume das flores ainda completamente úmidas.
Num pequeno chalé à beira de um majestoso lago, que insistentemente teimava em refletir a plenitude do céu, servindo de espelho ao voraz e sôfrego Sol, se abrigava igualmente sôfrega e voraz, uma jovem e gigantesca mente em busca de respostas. As impressões do mundo externo chegavam-lhe através das pequenas frestas permitidas pela construção daquela estrutura em que se encontrava.
Conciliava, aquela modesta e charmosa casa de campo, uma decoração rústica com requintes de modernidade. A música ali dentro era nostálgica e até certo ponto, melancólica. Construto racional dos conceitos da sua época, preenchidas da história de seu tempo. Permissão concedida para transcender através do, e para o, seu próprio universo. 
O compacto chalé era composto apenas por uma sala, um quarto e um banheiro, a seco, que se encontrava do lado externo da casa, que tinha o objetivo de otimizar a racionalização do uso de água, por onde se podia chegar através de um caminho coberto - uma espécie de varanda, construída com piso de tacos, acompanhada por uma trabalho de paisagismo que procurava valorizar a beleza natural das plantas.
A sala era compreendida também de uma cozinha, integrada, uma cama, para hóspedes, a um canto, e a outro, uma banheira, que se achava junto a uma grande janela. O quarto, que era também um escritório, tinha vista para o lago.
Do interior do pequeno e abafado quarto, que se encontrava fechado, apesar de não ter mais ninguém naquele chalé, havia despertado, há quase noventa dias, aquele jovem. Seu nome era Rudá. Estava sentado na cama, e sob a penumbra do quarto, refletia sobre tudo o que vivera até ali - pensava no que poderia ter sido diferente; especificamente, na série de acontecimentos que começaram a se desencadear nos últimos três anos, e que o impulsionaram para aquele lugar, aquele momento. Uma série de fatos que mudaram profundamente sua vida, e, principalmente, sua compreensão sobre ela.
Encontra-se deitado na cama, inerte. Tenciona se levantar da cama, ir até a janela e abrir as cortinas, mas logo desiste, prefere aquele ambiente de semi-escuridão a deixar entrar toda a luz no quarto, era sempre assim; desde o dia em que se encerrou naquele quarto. Sabia da existência da beleza do lago ali fora, mas não se sentia capaz de encará-lo de dia. Ficava assim, o dia inteiro dentro do quarto, recluso em si. Só caminhava pelo lugar à noite, quando então gostava de olhar o lago, ver o reflexo prateado da lua sob suas margens escuras. Observava a rotina dos animais noturnos, mas desconhecia a dos que preferiam ao dia. À noite quase todos os animais que observava eram predadores, se identificava de certa forma com eles. Chamava sua atenção especialmente as corujas, seu canto, sua seriedade, a atmosfera de mistério que quase sempre as rodeiam.
Uma noite, em uma de suas caminhadas a beira do lago, sob a claridade de uma lua crescente, quase cheia - e que de tal modo permitia observar com facilidade quase tudo ali, ainda mais que suas vistas estavam cada vez mais acomodadas àquele ambiente noturno - olhava a mata ao longe. Podia sentir a escuridão que vinha de dentro da mata, devido à impossibilidade de penetração da luz. Quando observou uma coruja de um cinza bem claro, enorme, próximo a ele; ela o fitava. Logo chegaram outras, e agora eram três. Começaram um canto diferente, muito bonito. Permitiu-se saborear aquele inusitado presente.
Ficou ali parado, fitando-as, e esperando entender o que queriam. Tinham uma mensagem para ele. Depois de entoarem um canto harmonioso, breve, e lutuoso, entreolharam-se, voaram em sua direção e, passando por ele, foram embora, perdendo-se na imensa escuridão da noite. Ainda tornaram a cantar, distantes. A lua quase no horizonte se apresentava amarelada, quente e fria, exuberante e imensa. Mágica, enamorada de todos aqueles que se sentem apaixonados.
Naquela noite, Rudá sonhou que estava sozinho em uma ilha, e fazia muito esforço para gritar a qualquer um que fosse, mas a voz não lhe saía. Então lhe aparece uma família: um senhor bem velhinho, uma mulher e uma criança. Eles tentam lhe dizer alguma coisa, mas num estranho dialeto, que apesar de sentir que é capaz de entender, não compreende. Na ânsia de se fazer comunicar com aquela família, se desespera. No seu sonho, é lançado através do chão, a uma gruta; sua parede é recoberta de desenhos primitivos e apesar da escuridão existente na caverna, podia-se enxergar perfeitamente cada um daqueles desenhos - diversos símbolos, formas geométricas, triângulos, templos - como se emitissem algum tipo de luz. Também podia ver o vapor de ar que saía de sua respiração devido ao frio que fazia ali. Em um dos desenhos ele se vê, ele está cruelmente rindo para si mesmo; outro mais adiante, um guerreiro, que o encara fria e profundamente, os olhos como labaredas - era, também, uma imagem sua.


Durante os três meses que permanecia no chalé, buscava desvendar o sentido de sua existência. Direcionar as informações que havia recebido naqueles últimos anos, equalizar num sentido coerente suas experiências e como elas poderiam lhe revelar um caminho lógico daquele momento em diante. Não havia consolidado nada naqueles anos, não tinha firmado compromissos com ninguém, e nem responsabilidade com outra pessoa que não consigo mesmo. Entretanto, começava a sentir que estendia demasiadamente a sua permanência naquele chalé. Alguma coisa no sonho parecia ter-lhe despertado uma chama, a tempo apagada. Mas não sabia para onde ir, ou o que fazer, sentia, apenas que tinha que deixar aquele lugar.
Tinha justificado sua estada prolongada com o objetivo de repensar sua vida, o rumo que estava tomando e a direção que ele queria impor. Mas já reconhecia que estava ali em grande parte por acomodação, por inércia. Entendia que não encontraria as respostas que procuraria ali naquele lugar, em suas caminhadas noturnas, ou naquele quarto solitário. Ou ainda, que as respostas que procurava não estariam em lugar algum, que não nas razões que existiam dentro dele mesmo.
Esperava, todavia, que algo acontecesse para sair dali - que o tirasse dali - desejava impor a direção aos acontecimentos que o rodeavam. Sentia essa necessidade do controle, apesar de saber que se tratava de um sentimento impossível, e que, na verdade, o que o afligia eram seus próprios sentimentos. Entretanto, tinha que deixar aquele lugar. Mas esperava que algo extraordinário acontecesse, e se fixava tão intensamente nessa idéia, que deixava acontecimentos extraordinários passarem despercebidos. Havia se transformado em uma desculpa para permanecer como era, um obstáculo que bloqueava sua própria transformação, esperava esse acontecimento que talvez nunca viesse a existir, mas que talvez viesse, porque desejava intensamente, e para tirá-lo dali; esperava godô.
O calor praticamente derretia os objetos do quarto. Aquele era o dia mais quente que já havia experimentado, seu rosto transpirava como uma tampa de panela. O pequeno cômodo havia se transformado numa sauna. Os sons dos pássaros e dos animais do lado de fora invadiam com extrema intensidade o quarto ali dentro, fechado. A escuridão era irrompida pela luz que insistentemente invadia o ambiente pelas pequenas frestas nas paredes, no teto.
A temperatura parecia estar tão absurdamente elevada, que, por vezes, lhe concedia a impressão de que pudesse sentir a água gelada do lago ali fora passando pelo seu corpo. Há quase três meses, desde sua chegada, havia despertado do estado de semi-coma ao qual tinha submergido; visitado os lugares recônditos do seu ser; enfrentado os seus piores inimigos, os que ele tinha criado dentro si. Desde que havia despertado se negava a encarar a vida, se sentia preso ao sentimento de morte, procurava alguma justificativa para sua dor. O calor era tanto que penetrava seus orifícios, seus poros, esquentava seu sangue, fazia sua cabeça latejar; ao seu pulmão chegava morno o ar. Estava sufocado, saturado dele mesmo.
Sentia saudade dos seus amigos e, dentre eles, principalmente de Estéla. De todos em seu grupo de amigos, era ela quem o conhecia a mais tempo, em quem ele mais confiava, e para quem ele corria nos momentos de dificuldade, sempre que sentia aquele frio aterrorizante em seu peito, e que ela, só ela, sabia sempre como resolver. Sentia saudades também dos seus pais. Sentia saudade de si mesmo.
A temperatura dentro do seu quarto não parava de subir. Quanto mais Rudá se aprofundava nos seus pensamentos, mais o calor tomava um aspecto sufocante e insuportável. A energia do Sol inundava aquele pequeno cômodo. Rudá sentia se sentia estafado, até que então, começou a perceber que a energia ali era tão intensa que começava a invadir o seu corpo; ele permitia.
No início, sentiu como se um tipo de moleza o invadisse todo, em seguida, entretanto, sentiu uma fonte de força impelir seu ser; como se o calor do seu corpo entrasse em sintonia com o calor do ambiente, ambos ampliando-se mutuamente. Aquela energia foi se acumulando de tal maneira que, num dado instante (sentindo que sua cabeça estava prestes a explodir), ainda meio zonzo, estonteado - mas agilmente, num impulso - salta da cama e como um leão irrompe a porta do quarto. Algemas que se desprendiam dos seus pulsos.
Suas mãos estão frias, mas seus braços estão quentes. Sente a brisa que entrava pela janela da sala invadir o seu quarto, fazendo circular a energia daquele lugar, possibilitando arejar sua mente. Na sala avista uma pequena família de esquilos que aproveitavam a brisa e faziam da banheira uma lagoa artificial para mergulhos - saindo agitados pela janela à visita do inesperado anfitrião. Como era bela a imagem daquele chalé de dia, a base de alvenaria de pedras rústicas, a madeira das paredes e do teto, os detalhes coloridos correndo pelas paredes; as obras de arte, harmoniosamente dispostas. Seu peito se enchia de uma energia intensa, de uma sensação de liberdade e paz.
Imbuído desse espírito atravessa a varanda, observando os intrigantes detalhes de sua estrutura, notando a beleza natural das plantas do jardim. Começa, então, a correr, com a maior velocidade que consegue atingir, a plenos pulmões; um índio na mata, em perseguição que se guia através do seu instinto, por uma força maior. Sente a força das suas pernas e de todo o seu corpo, a forma como o seu pé toca o chão; e em um vôo - se joga no lago.
A água, gelada que estava, lhe cerca por todos os lados. Ali, debaixo da água, abre os olhos e aprecia aquela imensidão azul brilhante, mesclada aos raios de sol. Ainda submerso, resolve olhar para cima e se maravilha com a interação da imagem do Sol através daquele espelho d’água, ondulado, esplêndido, dançando sob a superfície toda prateada. Naquele momento, em meio a carpas e tucunarés, sob o toque gelado das milhares de partículas de água que lhe cercam, então, parece, enfim, compreender quem ele realmente é.
Assim como era a extensão daquelas partículas de água que o cercavam, que se moviam à medida que se movimentava, e a água que também o fazia se mover - unidade e contínuo - ele era a soma e extensão de todas as pessoas que lhe cercavam e lhe faziam companhia, estas mesmas das quais ele se afastou nos últimos anos, sua família e seus amigos. Ele era o conjunto de todas as situações que vivera, cada qual conexa a cada um dos indivíduos que sempre estiveram com ele. Sendo uma pessoa, de certa forma, singular, em cada um. Era a união de todas essas formas, as quais pediam, as diversas situações. O resultado da sua conexão única com cada sujeito distinto. A soma complexa da totalidade. Ele era o todo.
Contudo, nos últimos anos, buscando se encontrar, em verdade, ele se perdera. Pois se afastou, sem razão, daquilo que ele efetivamente era. Buscando unicamente alguma forma de estar só, pretendendo a solidão, à medida que a encontrava, se perdia. Via, agora, na realização da vida, rodeado de outras pessoas, o sentido e a possibilidade da sua transformação, e da própria vida; da força da união dos esforços. E no desejo de estar sozinho, o próprio e simples, destrutivo, egoísmo.

Quadro do artista João Felipe Soares


Após o banho no lago, Rudá se sentia refeito, contudo naquela mesma noite uma violenta febre apoderou-se dele. Depois de tantos dias seguindo sua rotina habitual noturna, fechado no pequeno quarto durante o dia, entregue a sonos entrecortados e desconexos, lhe parecia que a idéia do banho repentino no lago não lhe tinha feito bem. Ardia em febre. Não tinha analgésicos no chalé, tampouco disposição de preparar algum chá. A noite entrava e sua cabeça parecia estourar. Procurou se deitar e se cobrir com o máximo de cobertas que dispusesse, sentia um frio enlouquecedor. Ao mesmo tempo, sentia seu corpo arder em brasa, como se uma fogueira tivesse sido colocada no interior do seu ser, e ele pudesse sentir suas labaredas nas extremidades do seu corpo, latejando em sua cabeça.
A febre invariavelmente é um sistema de defesa do corpo na tentativa de torná-lo hostil à algum hospedeiro indesejável. Contudo se torna perigosa quando o descontrole sobre a temperatura permite a elevação exagerada, podendo levar à desnaturação de proteínas importantes ao organismo; dificultando a realização de processos corporais. Podendo, inclusive, levar à morte. Quando bebês, estamos quase sempre sob a ameaça desse sistema, momento que demanda muita atenção sobre a criança. Socorro que quase sempre se recorre ao esforço materno.
Febre, todavia, também pode significar grande perturbação do espírito, desejo ardente, ânsia de possuir ou de alcançar alguma coisa.
Uma febre alta á sempre sinônimo de sufoco. Rudá transpirava junto a mobília do quarto. Tremia com os calafrios que o cometiam. Tinha dores no corpo todo, nos olhos, no peito, no abdômen.
Seu quarto ora encolhia e esmagava-o, ora encompridava-se, e ele sentia-se perdido. Sentia um frio muito intenso. Enrolado no cobertor, sentia seu corpo se desmanchar em suor. Às vezes pensava que estava melhor e tentava se levantar da cama, então caía. Suas pernas não possuíam força. Não sabia qual temperatura tinha atingido, tremia. Nunca em sua vida sentira uma febre tão forte e intensa como aquela, como também nunca esteve tão só e desamparado de ajuda para enfrentar uma.

Durante a febre Rudá enxergou um grande coração no centro do seu quarto, era enorme e parecia ocupá-lo por inteiro. Além do mais, era muito vermelho e parecia coberto por uma leve camada de sangue que percorria do topo à base daquele coração, como um sutil espelho d’água.
Havia nele apenas uma região onde o sangue parecia se desviar, e o que não se desviava, coagulava. Ali a cor já não era mais tão intensa, mas de um cinza deteriorado. Parecia haver uma figura ali. Por mais que olhasse não conseguia desvendá-la. Como uma foto desgastada, fazia gestos para ele. O coração todo estava em volta de uma fogueira de cor violeta, que ao mesmo tempo que era enérgica, também não queimava. Então começou a tocar esse coração, e a acarinhá-lo. Lentamente, à medida que movia sua mão sobre ele ouvia pequenas frações de notas, trechos de músicas conhecidas. Sentia imenso prazer em tocá-lo. Parecia que ele sempre estivera ali no quarto, mas ele nunca havia o enxergado, e agora o sentia com tamanha concretude e nitidez.
À medida que se envolvia com o seu coração, mais queria se envolver com ele, o sentia forte. Teve necessidade de abraçá-lo. Quando o fez, entrou dentro do coração. Rudá via agora, lá de dentro: o seu quarto. Como quando no lago, ele enxergava os objetos no cômodo através do movimento vermelho da parede translúcida daquele coração. Enxergou, contudo, nesse momento, pessoas desconhecidas próximos à sua cama. Elas estiveram ali o tempo todo, e só agora as percebia. Via um homem sentado, com uma capa escura, sustentando uma bola transparente em sua mão, extremamente bonita, e até certo ponto, sedutora - mas completamente vazia. Passava uma falsa imagem de segurança e o aprisionava ali de alguma forma. Aquela bola era também uma algema, e aquele homem lhe falava coisas, que não se podia ouvir de dentro do coração. Um outro sujeito parecia jogar algo sobre ele, que lhe provocava ansiedade e medo - como uma substância que pudesse quimicamente alterar os processos fisiológicos do corpo - mas que também não podia o atingir do interior do imenso coração.
Sentiu um arrepio pelo seu corpo. Viu três corujas enormes, como as que tinha visto outro dia encarando-o, como que esperando uma ordem para agir.
Deixou-se abalar. Imaginava que nada daquilo fizesse sentido. Caminhou por algum instante e encontrou uma enorme e robusta árvore. Deitou-se e encostou a cabeça sobre suas raízes. Ao lado, percebeu uma jovem cascata. Olhando correr aquela diminuta quantidade de água, imaginou como o planeta era pequeno frente ao universo, e ao mesmo tempo imenso. Fechou os olhos e voltou para dentro de si. Ali, enxergou um vasto e animado campo composto de cores, formas, e músicas, tão maravilhosos, que se julgou incapaz de reproduzir fora daquele universo.
Deparou-se com um leão enorme que parecia ser capaz de qualquer coisa. O encarou nos olhos, onde pôde ver coragem, força e bondade. Para ser bondoso é preciso ser possuidor de coragem, e de força; é preciso ter coração. Todavia existia em algum lugar, uma região coberta por sombra, e que, podia-se ver, estava ligada à parte do coração que era cinza e coagulado.
Ao se direcionar para aquela região, viu um país bombardeado, destroçado por alguma guerra. Habitado por pessoas ansiosas pela paz, mas ainda mais por desejo de vingança, pelo remorso. Sentia que aquelas pessoas estavam dispostas a qualquer tipo de confronto, porque não tinham mais nada a perder.
Timidamente se lançou naquela região nefasta. Viu crianças defeituosas chorarem suas imperfeições, homens cruéis incapazes de se perdoar. Sentia-se completamente incapaz de consolar aquelas pessoas, quando viu um bebê engatinhando em sua direção, naquele lugar terrível. Pegou no colo e com carinho começou a balançá-lo. Quando olhou para o rosto daquela criança, com espanto, viu, que aquele bebê, era, em verdade, ele.
Saiu com o bebê no colo olhando o rosto de todos os adultos e crianças que haviam ali. Constatou que todos naquele lugar eram ele, e que o próprio lugar era ele também. Nesse momento a fogueira violeta que antes não conseguia penetrar aquela região, lançou suas labaredas sobre todo o espaço - e o local tocado, foi transformado. Seguindo uma onda enorme, que invadiu o lugar arrastando todo pó e cinza que havia. A água gelada o faz relembrar quando pulou no lago, naquele dia de calor.


Quadro de Ivone Baracat


No dia seguinte se sentia melhor. Ou ainda, se sentia tão bem como nunca houvera sentido antes. Da febre só conseguiu lembrar dos calafrios que sentira, e de que em algum momento tinha pensado que ia retornar ao estado inconsciente que vivenciou quando esteve em semi-coma. No mais, o que desejava era reorganizar a bagunça daquele quarto, abrir todas as janelas, colocar uma música que inspirasse e despertasse bastante adrenalina, e pular no lago - nadar até que os braços ficassem cansados de brincar na água.
Correu em seu traje de banho pela casa: como um foguete - e se lembrou que, quando pequeno, seu pai o chamava assim. Carregou a imagem do seu pai com carinho em sua mente, pensou, também, que deveria entrar em contato com sua mãe, pois que há algum tempo não falava com ela.
Suspirou o ar gostoso daquela manhã, ouviu com diversão o canto dos diferentes pássaros, a corrida dos calangos nas folhas - os pequenos animais jurássicos, como gostava de pensar. Deu um pulo no lago gelado que ainda deixava escapar uma densa neblina de vapor aos primeiros raios de sol.
A água estava realmente gelada, e aos poucos o lago foi ficando dourado com o nascer do Sol, ao longe, no horizonte. Ali estava em plena harmonia com a natureza, retornava à sua ligação com toda aquela energia, se sentia livre, e dono de uma felicidade que só poderia sentir ali, e em nenhum outro lugar.

De volta ao chalé, depois de comer uma mistura composta de frutas e cereais, sentindo ainda os músculos tesos da atividade exercida sobre as plácidas águas do lago, sentado na varanda, se enxugava na toalha, e observava a natureza. Aquela paisagem parecia lhe dar o sentido completo da vida. Resolve entrar a fim de arrumar a casa, e talvez, despedir-se dela.
De repente um estranho desejo de olhar para trás o faz parar. O que poderia ter atrás dele? Pensava unicamente na vontade de olhar mais uma vez a paisagem lá fora, talvez algum aspecto da natureza que lhe havia escapado, ou somente deveria parar e olhar para trás.
Aproximando-se pela trilha que dava acesso à casa, surgia a figura de uma menina magra, aparentemente apreensiva, e infinitamente linda. Com um vestido laranja e vermelho, os cabelos negros com mechas vermelhas que combinavam com o vestido, com a paisagem, com a primavera, com tudo.
Inacreditavelmente, era ela que chegava. Deslumbrante, ainda mais linda do que lembrava, era Estéla.
O que ela fazia ali? Como e por que ela tinha ido até lá? Rudá mal acreditava no presente que seus olhos lhe entregavam. Mal conseguia raciocinar. Estava pasmo de surpresa, e admiração. Estéla estava ali, verdadeiramente linda. Os olhos castanhos, brincalhões, interrogativos, inteligentes; a boca delicada que parecia pedir um beijo, dona de um sorriso largo e sincero; a expressão de leveza e perspicácia.
Sim, era ela! Definitivamente melhorada pelo tempo, não a criança que tinha sido sua maior colega, amiga, e confidente. Mas uma mulher, linda e charmosa, era, de fato, Estéla.

- Você mudou bastante desde a última vez que nos vimos.
- Você também. Nossa! Se a beleza tivesse um outro nome, seria o seu com certeza.
- Eu sei... mas será que você lembra qual é? - respondeu Estéla num misto de brincadeira e acanhamento.
- Como você veio parar aqui?

A chegada de Estéla, como observara em diversos outros momentos da sua vida, apresentava uma coincidência inexplicável. No dia em que tinha decidido a mudança do estado de inércia no qual se encontrava, e no momento em que estava preparando para deixar o chalé, eis que ela lhe surge à sua porta. Estaria efetivamente uma coisa relacionada à outra? Como poderiam estar? Se ele não houvesse tomado essa decisão, teria ela aparecido do mesmo modo? Essas perguntas surgiam em seu espírito e ele não as expulsava, tendo em vista que era uma surpresa, e uma coincidência extremamente agradável. Tivesse ela aparecido antes e o teria encontrado em estado de espírito tal que provavelmente teria ignorado sua presença.
Teria ela chegado igualmente linda, e ele não a teria visto tão bela, porque seus olhos estavam cerrados pela neblina do desejo de estar só. Encontraria nele talvez a cortesia de um estranho educado, que recebe uma visita inconveniente a quem se quer ver livre com pressa, e a rudez de um amigo que se prendeu de forma egoística à sua própria dor - Ignorando as dores e as alegrias que existem afora no mundo.
Teria então, o encontro inacreditável, e inesquecível, que se realizaria agora, tomado a forma de muitas daquelas coincidências que eram para acontecer, mas que acontecem nas horas erradas. Aqueles encontros que poderiam ter se tornado a grande aventura da vida, mas que as circunstâncias não permitiram, porque as bases que o promoveriam não estavam construídas. A oportunidade que se apresenta e que não encontra a base material e espiritual para ser experienciada, naquele momento.
Incríveis coincidências que estavam desenhadas, mas que não são vividas, porque provavelmente em algum momento nos desviamos da energia que canalizava aquele fato.
Definitivamente não era o caso desse encontro, ao contrário. O encontro que se realizava era de uma sincronicidade tão harmônica como uma música.
Contudo, Rudá em algum nível da sua consciência entendia o quão irracional, poderiam ser tais perguntas, e mesmo, tal pensamento. Entretanto sentia confiavelmente a conexão daquele acontecimento. Assim como seus olhos podiam observar as inomináveis cores na natureza, e sua pele poderia lhe avisar a variação da energia no ambiente através da sensação da temperatura; era capaz de perceber concretamente aquela parcela da realidade a partir da sua intuição, somada à sensibilidade que havia desenvolvido no último ano, que antecedeu sua chegada ao chalé.
Mas mesmo sabendo que sua estada ali fora necessária como estágio imprescindível do processo que vivenciara, a fim de que fosse possível se recuperar, restaurar sua energia e a harmonia do seu universo íntimo; pesava-lhe saber o quanto ele mesmo havia adiado aquele encontro com Estéla, que se revelaria, então, o encontro mais maravilhoso de toda sua vida.
Quadro de Ivone Baracat

Um comentário:

  1. Fui ao lançamento mas não sabia do conteúdo do Lívro... Agora pude ver, gostei muiito!

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